uma história ensebada

laura carolina
4 min readOct 18, 2021

por trás das estantes altas — minha história com os sebos, dicas & reflexões

eu devia ter uns 11 anos quando descobri o que era um sebo. nosso começo não foi dos melhores, porque o próprio nome do estabelecimento me causou uma onda de perplexidade e asco. como assim, sebo? imaginei livros ensebados, capas e folhas pegajosas, marcadas por cacas ancestrais e dedos sujos de gordura. que nojo, meu deus! mesmo assim, foi de um sebo que veio meu primeiro livro paradidático do ensino fundamental 2. para a minha surpresa, o livro estava em condições razoáveis, e eu não senti nojo algum em manuseá-lo.

o sebo onde minha mãe adquiriu este livro foi também o primeiro no qual eu entrei. a loja não existe mais, mas lembro vagamente da sua localização no centro de santo andré. era um galpão de pé direito alto e organização desorganizada. as estantes iam atééééé lá em cima, com os livros mal alinhados, distribuídos pelas paredes e em pilhas no chão. lombadas grossas, finas, velhas, novas, gastas, de cores e até línguas diferentes! eu não ousava tirar as coisas do lugar, talvez intuindo que aquela bagunça fizesse sentido para o livreiro.

aos 14 anos de idade eu me encantei com um trecho de lygia fagundes telles num livro didático de literatura. assim que pude, acompanhei minha mãe até o centro de santo andré e pedi para visitar o sebo. foi meu primeiro passo de autonomia naquele mundo de livros diferentes. pedi para ver os livros da autora e comprei um exemplar de “ciranda de pedra” editado nos anos 80, pelo precinho amigo de cinco reais (que poderia pagar cinco esfihas na cantina da escola).

no ensino médio os sebos já tinham um papel importante: era neles que eu conseguia adquirir livros. livros novos eram caros demais (continuam sendo, afinal vivemos num país onde só rico lê, não é mesmo?), e os livros da biblioteca ficavam nas minhas mãos só por uma ou duas semanas. eu era uma usuária assídua da biblioteca da escola e também do saudoso ônibus biblioteca da prefeitura de são paulo, mas queria ter livros. pra mim. meus, meus livros. os sebos tornavam isso possível.

eu conseguia comprar livros economizando aqui e ali no orçamento da cantina. assim que a aula terminava, passava em um dos dois ou três sebos perto da escola e ficava ali passeando e espiando. agora já abrindo livros pra folhear e ler. muitas vezes ia para olhar o mesmo livro, dias a fio. foi numa dessas idas que eu descobri que os sebos me ofereciam a possibilidade do escambo. se eu desse um livro, poderia levar outro de graça, ou completar o valor com um ou dois reais (dois reais era o que eu gastava pra comer um pastel e tomar uma coca-cola. sim, todas as minhas finanças pessoais na adolescência eram medidas em termos de livros e lanches). e foi assim que eu me desfiz de quase toda a minha modesta biblioteca de pré-adolescente.

foi também nessa época que eu conheci o segmento que, até hoje, é o meu preferido e campeão absoluto de afeto e apreço no mundo sebístico: os livros raros. lembro até hoje da tarde em 2006 em que a minha amiga camila (espero que ela leia este texto) e uma amiga dela me levaram para conhecer o sebo nova floresta, na praça joão mendes. eu simplesmente enlouqueci secretamente com os livros editados nas décadas de 1930, 1920 ou até antes. pra quem anos atrás tinha pavor da ideia de mãos pretéritas pegando aqui e ali nas páginas, percebi cheia de fascínio que aquelas páginas puídas e capas carcomidas haviam, justamente, passado de mão e mão. folheadas e lidas por homens e mulheres que andavam de bonde e dançavam foxtrot.

e percebi a magia do tempo: nós passamos e os livros ficam. ler um livro que já pertenceu a outra pessoa é participar de um mistério. um pacto leitor entre indivíduos que nunca se conheceram e nem poderiam, porque nasceram separados por décadas e décadas no tempo. pacto possível de ser consumado pela mediação material do papel, da tinta, da cola, das linhas e dos tecidos. quem sabe o quanto do leitor também não fica no livro? os objetos são o mais próximo que podemos chegar de uma viagem no tempo.

livros antigos, etiquetas arcaicas

nos anos seguintes viriam outras dicas quentes, de outros membros do fã clube de livros mais-velhos-que-nossas-avós. o maior desses toques sem dúvida é a rua álvares machado — atrás justamente da praça joão mendes e seu badalado sebo do messias. uma ruazinha que tem dois sebos maravilhosos para quem gosta de um garimpo pesado e não medo de itens como: estantes altas e confusas, escadas íngremes, bolor, traças e alfabetos desconhecidos. são eles o sebo álvares machado e o sebo machado de assis. precisa ter pique e amor pelo caos. se for esse seu caso, a recompensa é a própria experiência da descoberta de coisas interessantes; além da chance de comprar algo bacana por um preço legal.

em santo andré, o atual campeão é a unidade do sebo pacobello na rua coronel abílio soares, um galpão gigantesco e organizadíssimo. tem de tudo. também gosto bastante (e sou frequentadora há quase 15 anos) do sebo poesia e arte, na rua elisa fláquer.

claro que a experiência romântica de desbravar sebos já é, em si mesma, algo arcaica. a estante virtual reúne na mesma plataforma sebos do brasil todo, e chuto que nos últimos dez anos 90% das minhas aquisições de livros usados tenham vindo por lá. para quem sabe o que quer e deseja soluções rápidas, é o melhor caminho. também calculo que a plataforma seja uma boa ferramenta para os livreiros de livros antigos, e por isso louvo sua existência. mas também torço para que os sebos nunca deixem de ser lojas físicas — e lojas físicas onde possamos respirar um pouco de ácaros e imprevisibilidade. eu, pelo menos, faço bom uso psíquico desses ingredientes.

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laura carolina

respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada | jornalista e estudante de história | são paulo | laura.cac90@gmail.com