telefone de recado

laura carolina
3 min readDec 6, 2021

a última encarnação da comunicação mediada

até algum tempo atrás os formulários e afins traziam no campo “contatos” o sub-campo “telefone para recados”. nasci na rabeirinha do século 20 e no início de tudo da década de 1990. como eu sempre lembro para terceiros, talvez na esperança inconsciente de localizar meu nascimento e existência na ordem de algo maior, o mês em que vim ao mundo foi também o período para o qual os órgãos de estatística brasileiros aferiram o maior índice inflacionário da história. foi o “auge da hiperinflação”, como sacramentado pela história econômica recente. e o final da era sarney.

nessa época em que os zeros à direita das cifras se multiplicavam semanalmente coisas hoje prosaicas eram vistas como assets. um exemplo era o telefone. coisa carésima, que demorava um tempão pra ser instalada. sei isso de segunda mão, porque os mais velhos contam e os classificados de jornais também. e sei porque mais ou menos em 1993 ficamos sem telefone lá em casa. meu pai precisava de dinheiro pra alguma coisa (comprar um carro?) e vendeu o telefone, a fim de levantar a grana necessária. e conseguiu, porque a base de cálculo era mais ou menos a mesma. e com isso ficamos dependentes do telefone de recados.

o telefone de recados ficava na casa da vizinha da frente. essa senhora era responsável pela comunicação da nossa e de outras famílias destelefonadas da rua. anotava recados de parentes e conhecidos e, quando alguém precisava acionar um parente ou conhecido, corria na casa da vizinha pra usar o telefone. e o uber achando que ele inventou a dinâmica colaborativa (?) nas telecomunicações. antes de ser um apetrecho individual de bolso, telefone era necessariamente comunitário.

nossos antepassados se comunicando por VOZ que não era áudio no whatsapp

digo necessariamente não pelo telefone de recados — ou não necessariamente por eles, que eram, acho eu, mais uma ferramenta de sobrevivência suburbana, do pobre premium dos anos anteriores à privatização do serviço, do que um fenômeno universal. e sim porque mais onipresentes ainda eram os orelhões, só agora extintos (ou quase). eu tenho lembranças de ir com a minha mãe telefonar (interurbano!) de um orelhão perto de casa, em frente à confeitaria. às vezes tinha fila. nada grave, duas pessoas no máximo, já que estávamos em um bairro. nas ruas do centro o orelhão era mais concorrido. o problema real eram os conversadores, pessoas que ficavam looooongos minutos de papinho enquanto a fila se arrastava lá atrás.

e em alguns lugares mais distantes e desprovidos de linhas havia quem usasse o número do orelhão mais próximo como telefone de recados. solução arriscada, amparada em fatores quase da ordem do imponderável. haveria alguém para atender o chamado? e para ir chamar a pessoa, caso fosse urgente? pois. ocorre que, de fato, as pessoas atendiam ao orelhão. e pensamos hoje quantos recados foram efetivamente recebidos nesse mundo tão extraordinário e impreciso.

viver antigamente implicava confiar à beça nos outros e no acaso. acreditava-se que conhecidos anotariam recados, que não haveria nenhum desencontro de informações ou simples número ditado errado. até a afirmação ser apurada e corrigida dias já haveriam se passado. o bebê que no momento do telefone apenas fizera estourar a bolsa de líquido amniótico já estava em casa, o namoro por um fio definitivamente acabado após o silêncio do outro lado, a oferta retirada, a reaproximação cancelada, a trégua adiada. tanta coisa podia dar errado. haveria que se ter muita fé.

e algumas coisas deveriam dar errado mesmo. igual hoje e sempre. mas acho poético pensar em uma época assim. em que alguém escutava um telefone público tocar e atendia, pra depois perguntar ao redor “tem algum roberto por aqui? é a maria augusta querendo falar”. romantizo, eu sei e é claro. até porque sou uma pessoa que tem quase-horror a falar ao telefone. mas acho algo bonito nos outros — no caso, nas pessoas do passado. igual abotoaduras e pó de arroz.

--

--

laura carolina

respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada | jornalista e estudante de história | são paulo | laura.cac90@gmail.com