telefone de recado
a última encarnação da comunicação mediada
até algum tempo atrás os formulários e afins traziam no campo “contatos” o sub-campo “telefone para recados”. nasci na rabeirinha do século 20 e no início de tudo da década de 1990. como eu sempre lembro para terceiros, talvez na esperança inconsciente de localizar meu nascimento e existência na ordem de algo maior, o mês em que vim ao mundo foi também o período para o qual os órgãos de estatística brasileiros aferiram o maior índice inflacionário da história. foi o “auge da hiperinflação”, como sacramentado pela história econômica recente. e o final da era sarney.
nessa época em que os zeros à direita das cifras se multiplicavam semanalmente coisas hoje prosaicas eram vistas como assets. um exemplo era o telefone. coisa carésima, que demorava um tempão pra ser instalada. sei isso de segunda mão, porque os mais velhos contam e os classificados de jornais também. e sei porque mais ou menos em 1993 ficamos sem telefone lá em casa. meu pai precisava de dinheiro pra alguma coisa (comprar um carro?) e vendeu o telefone, a fim de levantar a grana necessária. e conseguiu, porque a base de cálculo era mais ou menos a mesma. e com isso ficamos dependentes do telefone de recados.
o telefone de recados ficava na casa da vizinha da frente. essa senhora era responsável pela comunicação da nossa e de outras famílias destelefonadas da rua. anotava recados de parentes e conhecidos e, quando alguém precisava acionar um parente ou conhecido, corria na casa da vizinha pra usar o telefone. e o uber achando que ele inventou a dinâmica colaborativa (?) nas telecomunicações. antes de ser um apetrecho individual de bolso, telefone era necessariamente comunitário.
digo necessariamente não pelo telefone de recados — ou não necessariamente por eles, que eram, acho eu, mais uma ferramenta de sobrevivência suburbana, do pobre premium dos anos anteriores à privatização do serviço, do que um fenômeno universal. e sim porque mais onipresentes ainda eram os orelhões, só agora extintos (ou quase). eu tenho lembranças de ir com a minha mãe telefonar (interurbano!) de um orelhão perto de casa, em frente à confeitaria. às vezes tinha fila. nada grave, duas pessoas no máximo, já que estávamos em um bairro. nas ruas do centro o orelhão era mais concorrido. o problema real eram os conversadores, pessoas que ficavam looooongos minutos de papinho enquanto a fila se arrastava lá atrás.
e em alguns lugares mais distantes e desprovidos de linhas havia quem usasse o número do orelhão mais próximo como telefone de recados. solução arriscada, amparada em fatores quase da ordem do imponderável. haveria alguém para atender o chamado? e para ir chamar a pessoa, caso fosse urgente? pois. ocorre que, de fato, as pessoas atendiam ao orelhão. e pensamos hoje quantos recados foram efetivamente recebidos nesse mundo tão extraordinário e impreciso.
viver antigamente implicava confiar à beça nos outros e no acaso. acreditava-se que conhecidos anotariam recados, que não haveria nenhum desencontro de informações ou simples número ditado errado. até a afirmação ser apurada e corrigida dias já haveriam se passado. o bebê que no momento do telefone apenas fizera estourar a bolsa de líquido amniótico já estava em casa, o namoro por um fio definitivamente acabado após o silêncio do outro lado, a oferta retirada, a reaproximação cancelada, a trégua adiada. tanta coisa podia dar errado. haveria que se ter muita fé.
e algumas coisas deveriam dar errado mesmo. igual hoje e sempre. mas acho poético pensar em uma época assim. em que alguém escutava um telefone público tocar e atendia, pra depois perguntar ao redor “tem algum roberto por aqui? é a maria augusta querendo falar”. romantizo, eu sei e é claro. até porque sou uma pessoa que tem quase-horror a falar ao telefone. mas acho algo bonito nos outros — no caso, nas pessoas do passado. igual abotoaduras e pó de arroz.