remédios d’outrora

laura carolina
5 min readJan 30, 2023

poética dos males mais ou menos mortais

sou há muitos anos fascinada por propagandas antigas. nunca fui de cultivar hobbies (me falta a disciplina), mas sou dada à curiosidade e de vez em quando gosto de folhear virtualmente jornais antigos no site da biblioteca nacional. prestando atenção no que chama a atenção, sem buscar nada específico, passeando por imagens, artigos, classificados e afins. nesse passatempo (que começou quando eu era adolescente e toda semana passava uma hora na biblioteca municipal re-re-folheando a coleção nosso século, da editora abril), as propagandas sempre me chamaram a atenção. lá pelo início do século passado, elas tinham uma retórica que hoje achamos rebuscada e desenhos que nos parecem barroquíssimos. e eram, de fato, tempos de excesso (ou do que hoje classificamos como excesso). época que as reportagens usavam de muitos pontos de exclamação para comunicar a real dimensão de tragédias como um descarrilamento de bonde em que três pessoas morreram!!!

eram tempos de alarme. o que dá pra entender, já que nesse começo do século aconteceu uma guerra mundial sem igual até então, e antes dela dezenas de conflitos bastante sangrentos, testemunhas de uma revolução tecnológica que acontecia também na indústria bélica.

e existiam as doenças, responsáveis por disparar um alarme muito sensível, real e palpável na vida das pessoas. um alarme de morte.

não existia antibiótico e enfermidades que começavam de maneira prosaica matavam crianças, idosos e adultos sadios. vacinas até existiam, mas não eram muitas. ter saneamento básico e a consciência do que era água potável fazia parte da realidade concreta de poucos. o exame de sangue estava recém inventado e não existiam raio-x, ultrassom, ressonância magnética e mil formas de prescrutar o corpo humano em busca de algo errado, de um corpo estranho, de uma célula infectada. na surdina as coisas cresciam. e as pessoas morriam.

morria-se mais do que hoje, e de doenças que atualmente quase não matam mais (pelo menos torcemos para que assim seja). o que fazia as pessoas serem muito mais francas não só na hora de falar sobre a morte (assunto de que já falamos aqui), mas também na hora de falar de doenças. será? não sei. é uma hipótese, amparada em boa parte nas propagandas de remédio lá do início dos 1900.

estava eu à toa vendo uma edição de 1910 do jornal maranhense “a pacotilha”, e foi inevitável ver uma graça mórbida que não existe mais em duas propagandas de remédio. na primeira, da emulsão de scott, lê-se que o remédio “livrou esta criança d’uma morte certa”, e abaixo a ilustração em preto e branco de uma menina com gola de babados e cachinhos — preto e branco exceto pelas bochechas da garota, graciosamente coloridas de um vermelho pálido. em outra, há apenas texto: “prestes á morte: orrivel cancro shyphilitico / homem sem nariz / cura com o elixir de nogueira”. sem meias palavras, sem rodeios. apenas moléstias e a ameaça da morte pairando sobre todos.

mini influencer de remédio

esses redatores publicitários sinceríssimos podiam chamar sua audiência de raquítica, débil, feia, sem vigor e pálida, assim à queima roupa, no espaço de três linhas. estar à beira da morte era corriqueiro — morte prevenida com um simples xarope, ainda bem.

mas nem tudo era tão grave. em uma edição da revista “eu sei tudo” de 1928, uma propaganda lista alguns dos males que abatiam nossos antepassados: insomnias, neurasthenias, excitações, fadigas, excessos de trabalho. o remédio para tudo isso eram os comprimidos calmantes dllonal roche. em outra página, há 14 “conselhos médicos” para uma série de problemas de saúde. a composição é confusa, pois depois do nome do remédio pode tanto vir alguns dos sintomas que ele combate (“estimula o cerebro”, “miseria organica”) como parte da sua composição (“quirina e plantas carminativas em generoso vinho do porto”, “talco boricinado”, “resina de jatahy”). já o regulador fontoura dirigia-se às senhoras (uma classe sempre tutelada) e garantia ser “o grande remédio para combater as causas que alteram o seu estado de saude e para eliminar os disturbios nervosos as crises dolorosas e a consequente decadencia physica” (!!!!!).

e existiam, por fim, os males menos graves (dos quais sofremos até hoje), como não possuir muita beleza física. sutil, uma propaganda das desaparecidas pilules orientales (em francês) mostrava apenas um antes e depois: antes, uma mulher com os ossos à mostra, busto reto e rosto encovado e triste; depois, a dona de um colo macio e ombros arredondados, adornada com um colar e um sorriso. “bemfazejas — reconstituintes”, dizia a peça, que em seguida recomendava exigir o frasco de origem, fabricado na rue de l’echiquier, paris.

chocha, capenga, manca, anêmica, frágil e inconsistente

por que tanta agressividade nessas peças? e por que sua presença massiva na imprensa? (no meu compilado “eu sei tudo”, de 1928, há mais propagandas de remédio do que de qualquer outro produto). não posso afirmar, mas achei uma pista nessa mesma fonte. uma propaganda de cafiaspirina protagonizada por uma “tia mariquinhas” conta que antes do advento do remédio essa senhora “para qualquer dôr, accudia logo com unguentos e cosimentos de hervas”, mas “naturalmente o resultado não satisfazia a anciã”. anos depois, a fabricante desse remédio criaria o imbatível slogan “se é bayer, é bom”. mas aí está a nossa pista: fabricantes de uma nova indústria, sedentos por mercado e necessitando tirar de cena a concorrência dos centenários remédios caseiros e simpatias. por isso não só a retórica agressiva e males tão vagos quanto “distúrbios nervosos”, próprios daquele tempo, mas também o recurso da constante menção à química e a nomes de substâncias que seguramente poucos conheciam (se é ácido acetilsalicílico, é bom e faz efeito).

também chama a atenção a relação estreita entre saúde e beleza (feminina), e entre saúde e higiene, com a pasta de dentes colgate anunciando que oferecia um “frescor que nenhuma droga dá”, e o creme rugol prometendo a melhor fixação do pó de arroz — além, evidente, do combate às rugas. a assepsia entrava na moda, e a indústria da beleza dava seus primeiros passinhos de bebê (ou bébé, como se escrevia na época, à francesa). até hoje tudo isso se confunde de um jeito tão intrincado que ficou impossível saber onde termina um e começa outro.

a ponta fio desse novelo está por aí, nessa época, nessas páginas. algumas coisas podem parecer piegas e exageradas, mas quem pode dizer que um dia foram mesmo? e o que podemos fazer para defender a nossa própria época nesse sentido? afinal, se é bayer, é bom (segundo as propagandas, sempre foi e sempre será).

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laura carolina

respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada | jornalista e estudante de história | são paulo | laura.cac90@gmail.com