“… e perdoe-me, porque fui muito atrevida”

laura carolina
19 min readOct 15, 2021

Em “Livro da vida”, misto de confissão e tratado teológico, Santa Teresa d’Ávila oferece testemunho sobre lugar da mulher na Espanha quinhenhista

Transcorria a década de 1560 na Espanha, e Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada (1515–1582) era uma mulher-problema. Monja carmelita desde os 21 anos de idade, Teresa alegava viver experiências místicas que fugiam à ortodoxia doutrinária da Igreja Católica. Dizia que o próprio Senhor Jesus Cristo aparecia diante de seus olhos, e que muitas vezes Deus lhe falava diretamente quando estava em oração. Em outras ocasiões, era um anjo que surgia a seu lado, armado de uma lança com a ponta em chamas. A um gesto da criatura, o fogo atravessava o corpo de Teresa, extasiando seu corpo e espírito. Não bastando as supostas experiências de contato com o sobrenatural, a religiosa mostrava ousadias de caráter prático, tendo acabado de fundar um novo convento carmelita. Seu objetivo era nada menos que reformar a ordem religiosa à qual pertencia, fazendo valer as regras mais antigas e estritas de recolhimento e introspecção religiosa.

A Inquisição a rondava, e os padres que tomavam suas confissões sugeriram que Teresa escrevesse a respeito de suas experiências místicas. Daquela forma, se justificando por escrito e explicando a verdadeira natureza dos seus êxtases e arrebatamentos, poderia defender junto à instituição que seu caso não era o de uma herege tomada por demônios, e sim uma cristã tendo experiências genuinamente divinas. O escrito resultou em Livro da vida, editado pela primeira vez em 1588, por Frei Domingo Báñez, com o título La vida de la madre Teresa de Jesús. Essa publicação ocorreu seis anos após a morte de Madre Teresa de Jesus, título pelo qual seria conhecida ainda em vida. Em 1622, ela se tornaria Santa Teresa d’Ávila, por ocasião da sua canonização no papado de Gregório XV.

o êxtase de santa teresa (gian bernini, século 17)

Em 2010, a editora Companhia das Letras lançou por meio do selo Clássicos Penguin uma nova edição da obra em língua portuguesa, com tradução e notas de Marcelo Musa Cavallari, prefácio de Frei Betto e introdução de J. M. Cohen. Mistura de testemunho autobiográfico de caráter confessional e conjunto de pareceres teológicos, os 40 capítulos de Livro da vida podem ser divididos em três blocos. No primeiro, Teresa recorda os anos de juventude. A infância em Ávila, a entrada no convento carmelita e o longo padecimento por uma doença que, hoje, suspeita-se ter sido a malária. Também narra os anos posteriores, de monja pouco rigorosa em suas práticas religiosas. O aprofundamento de sua vida de introspecção leva à segunda parte da narrativa, em que explica os diferentes graus de oração que experimentou e o que cada um deles oferece aos fiéis. Na terceira parte, além de narrar as dificuldades e crises desencadeadas pela fundação do mosteiro carmelita de São José, o primeiro da Ordem Carmelita Reformada, Madre Teresa fala a respeito de experiências mais diretas de contato com a divindade — visões do paraíso e do inferno; ocasiões em que a voz de Deus surge para aconselhá-la a fazer isto e não aquilo; visões de santos que se dirigem a ela.

Menina, monja e teóloga

Entre os capítulos 1 e 10, Teresa recorda os anos de meninice e os primeiros tempos passados no Convento Carmelita da Encarnação. É preciso dizer que a natureza da “autobiografia” escrita pela santa é muito diferente do que hoje se considera um trabalho biográfico. Teresa raramente cita os nomes das pessoas envolvidas em suas histórias, referindo-se a elas simplesmente “um irmão de meu pai”, por exemplo. Datas também estão ausentes, e muitas vezes a monja confunde-se em relação à ordem dos acontecimentos — ela diz, por exemplo, que ficou órfã de mãe aos dez anos de idade, quando na realidade foi entre os 13 e 14 anos. As devidas retificações de nomes e datas encontram-se em notas ao final da edição, escritas pelo tradutor.

Teresa inicia seu relato dando conta de seus pais e dos primeiros anos de infância. O que o leitor tem diante de si, neste momento, é uma piedosa e culta família católica da Espanha na primeira metade do século 16, pertencente à alta burguesia. “Era meu pai amante de ler bons livros, e, assim, tinha-os em espanhol para que os lessem seus filhos (…) Meu pai era de muita caridade com os pobres e pena dos enfermos, e também dos criados. Tanta que nunca se conseguiu convencê-lo a ter escravos, porque tinha muita pena deles” (D’ÁVILA, 2010, p. 37). A família era muito religiosa. Teresa conta que juntava-se com um dos irmãos para ler sobre a vida de santos, e que, quando via os martírios pelos quais esses personagens haviam passado, “desejava muito morrer assim”. Os conflitos religiosos fazem seu primeiro eco na obra quando a Teresa madura recorda sua fantasia infantil de ser martirizada pelos muçulmanos e, assim, alcançar a santidade: “Combinávamos de ir à terra de mouros, pedindo, pelo amor de Deus, que lá nos decapitassem” (Ibid, p. 38).

Sua mãe, Beatriz de Ahumada, era o segundo casamento de seu pai. Beatriz estimulou na filha fortes sentimentos religiosos, mas também o gosto pelos livros de cavalaria. Isso a santa conta no capítulo dois, quando passa ao exame dos seus anos de juventude e ao que lhe aconteceu após a morte da mãe, em 1528. As histórias de cavaleiros fascinavam a Teresa quase adolescente: “Era tão forte o que me encantava nisso que, se não tivesse um livro novo, não me parece que estivesse contente” (Ibid, p. 40). A paixão pelos livros de cavalaria é vista com reprovação pela Teresa madura. A mesma censura é dirigida aos primeiros indícios de vaidade e ao desabrochar de sua vida social e provavelmente romântica. Após a morte da mãe, é enviada pelo pai a um convento, onde poderia completar sua formação religiosa e ser resguardada de problemas morais: “… porque ter minha irmã se casado e eu ficando sozinha, sem mãe, não era bom” (Ibid, p. 43). Sua opção pelo hábito, no entanto, se dá apenas algum tempo depois. Após quase dois anos no mosteiro, Teresa adoece e retorna para a casa paterna. Começa a considerar a vida religiosa e entra em embate com o pai. Embora não diga explicitamente o que a levou a optar pelo convento, percebe-se que teve suas dúvidas e dá pistas sobre o que a levou a se decidir: “Mas ainda queria que não fosse monja, que esse não fosse do agrado do Senhor me dar esse estado, ainda que também tivesse medo de me casar” (Ibid, p. 47). O temor de se tornar uma senhora, como sua mãe e irmãs, leva Teresa a escolher ser freira. “E mesmo não conseguindo que minha vontade se inclinasse para ser monja, vi ser melhor e mais seguro este estado e, assim, pouco a pouco, decidi forçar-me a tomá-lo” (Ibid, p. 48), conta. Teresa tentou convencer o pai a deixá-la ir para o mosteiro, e pediu que conhecidos a ajudem nesta tarefa. Tudo em vão. Ela deixa a casa do pai contra a vontade do mesmo.

Logo a vida de noviça no Convento Carmelita da Encarnação passa a agradá-la. Parece feliz de ter deixado para trás a vida anterior, de filha de rico comerciante: “Davam-me prazer todas as coisas da vida religiosa. É verdade que estava, às vezes, varrendo nas horas que eu costumava ocupar em me enfeitar e arrumar. E, lembrando-me que estava livre daquilo, me dava um novo prazer” (Ibid, p. 51). Estima-se que tenha tomado o hábito definitivo aos 21 anos, e segundo seu relato em Livro da vida passaria os 18 anos seguintes dividida entre a vida religiosa e a animada vida social do popular mosteiro. Com o tempo, as conversas com as colegas e visitas externas tornaram-se incômodas distrações para a freira que desejava se aprofundar na vida religiosa. Ao descobrir a chamada oração do recolhimento por meio do livro Tercera parte del libro llamado abecedario espiritual, do franciscano Francisco de Osuna, Teresa passa a exercitar uma nova modalidade de vida espiritual, centrada na oração interna onde utilizava suas próprias palavras, em vez de repetir em voz altas as preces recomendadas pela Igreja.

Esse caminho espiritual encontra uma interrupção de alguns anos. Teresa cai doente — hoje, considera-se que tenha sido vítima da malária — e precisa deixar o convento para ser cuidada de perto pelos parentes. É desenganada pelos médicos e chega-se a cavar sua sepultura, conforme ela conta em Livro da vida. Tinha, então, cerca de 25 anos. Escapa da morte, mas sua recuperação seria lentíssima e marcada por sequelas. Fica oito meses paralisada na cama, sem poder caminhar. Recuperada, retorna ao Convento e se dá por satisfeita em viver segundo suas irmãs de recolhimento viviam. Apenas aos poucos retoma suas antigas experimentações espirituais, e logo é tomada pela dúvida: seria lícito orar daquela maneira? Sem conseguir se entregar às suas próprias intuições religiosas, Teresa vivia dividida: “Sei dizer que é uma das vidas mais tristes que, parece-me, se podem imaginar. Porque nem eu gozava de Deus, nem tinha alegria no mundo” (Ibid, p. 86). Até que chega o momento da sua “segunda conversão”, já com cerca de 40 anos de idade. Pela primeira vez fica profundamente comovida pela visão do Cristo em chagas, e se volta em definitivo à oração interna. Era o início de suas experiências místicas e seus arrebatamentos, que ela descreve pela primeira vez da seguinte maneira:

Acontecia-me nessa representação o que fazia de me pôr ao lado de Cristo de que falei, e também algumas vezes, lendo, vir inesperadamente um sentimento da presença de Deus que de maneira nenhuma eu podia duvidar de que estivesse dentro de mim ou eu mergulhada n’Ele. Isso não era como uma visão. Creio que chamam de ‘teologia mística’. Suspende a alma de maneira que parece estar toda fora de si. A vontade ama. A memória me parece quase estar perdida. (Ibid, p. 98).

O bloco seguinte do livro se estende dos capítulos 11 ao 22. É a parte mais teológica de sua obra, pois descreve os “graus” de oração por ela experimentados, desde a oração mental mais simples até a experiência do arrebatamento, que leva corpo e alma a gozar da unidade com o divino. As primeiras colocações da Teresa proto teóloga são algo tímidas. Ela sabe que o conteúdo de seus escritos será examinado à luz da ortodoxia, por isso desculpa-se por não ser homem e erudito, antecipando-se às críticas: “… basta ser mulher para baixar-me as asas, quanto mais sendo mulher e ruim” (Ibid, p. 102) ou “Para mulherzinhas como eu, fracas e com pouca fortaleza…” (Ibid, p. 111). Mesmo assim, prossegue explicando seu método de oração, que consiste em se imaginar diante de Cristo e “enamorar-se” de sua presença: “… trazer-lhe sempre consigo e falar com Ele, pedir-lhe por suas necessidades e queixar-se de seus trabalhos, alegrar-se com Ele em suas alegrias e não esquecê-los por causa delas. Sem procurar orações compostas, mas sim palavras conforme a seus desejos e necessidades” (Ibid, p. 115). É este relacionamento direto e íntimo com o divino que tornava Teresa algo desviante — ou a menos preocupante — em sua época.

A monja compara a alma humana a um jardim onde Deus habita, e a oração à água que faz vicejar as plantas e flores, símbolo das virtudes. Segundo sua metáfora, existiriam quatro tipos de “água”, cada um correspondendo a um grau de desenvolvimento místico. A comparação não é fortuita, pois a todo momento Teresa queixa-se da “secura” da alma como uma grande fonte de tristeza. A primeira água é retirada de um poço, exigindo grande força de vontade por parte do jardineiro. A segunda água também é retirada do poço, mas com a ajuda de polias e baldes. A terceira é a água corrente de um rio, e a quarta é a água abundante em forma de chuva. Nesse estágio, o próprio Deus se encarrega de cultivar o espírito humano, tal é a união entre criador e criatura. O primeiro grau é o mais trabalhoso, mas já no segundo “Sua Majestade começa a se comunicar a essa alma e quer que sinta como se comunica” (p. 131). A cada estágio o deleite é maior, e maior também é o distanciamento em relação à razão e às palavras — daí a expressa dificuldade de Teresa, pretensa ou real, de explicar suas experiências sobrenaturais. Sobre o penúltimo grau de oração, ela diz ser “… um glorioso desatino, uma celestial loucura onde se aprende a verdadeira sabedoria e é uma deleitosíssima maneira de a alma se regojizar” (Ibid, p. 148).

O encontro total entre criador e criatura, ser amado e ser amante, é alcançado no quarto grau. É a porta de entrada para o estado de êxtase, que tanto intriga seus confessores. Teresa dirige-se diretamente a eles em sua explicação sobre esse estado: “O senhor me perguntará como dura, às vezes, tantas horas o arrebatamento, e muitas vezes. O que acontece comigo é que — como já disse sobre a oração anterior — experimenta-se o gozo com intervalos. Muitas vezes, a alma mergulha ou, para dizer melhor, mergulha-a o Senhor em si…” (Ibid, p. 185). Teresa, então, demostra incômodo com o escrutínio que sofre. Sabe que a acusam de “querer ser santa e inventar novidades”. Ou que “Consideram-na pouco humilde, e acham que quer ensinar às pessoas de quem deveria aprender, especialmente se for mulher” (Ibid, p. 188). Seus críticos pensam que seu estado intenso de contemplação é “tentação e disparate”, e a monja clama para que essas pessoas compreendam que tal experiência não nasce dela, e sim do Senhor. É dessa forma que Teresa sela sua defesa do caminho espiritual contemplativo, centrado na introspecção e no relacionamento do fiel com o divino.

Do capítulo 23 ao 40, a autora retoma a narrativa de sua vida, misturando aspectos teológicos a fatos concretos. Nessa etapa do livro, surgem em cena seus principais companheiros de jornada. Os padres seus amigos que lhe escutam suas confissões e garantem que suas experiências místicas são lícitas — dominicanos e jesuítas, sobretudo, sendo esta última Ordem alvo de grande estima e identificação da santa. Nobres que são seus benfeitores e a auxiliam em seus empreendimentos futuros. O desejado equilíbrio entre vida interior e exterior, que lhe atormentava anos antes, finalmente é alcançado. Seu relacionamento com Deus se intensifica, pois nesta fase ela passa a ouvir as palavras divinas, “mas não com os ouvidos corporais”. Sua alma torna-se um campo batalha — desta vez, entre Deus e o diabo. Recebe visitas de anjos e tem visões de um Jesus Cristo luminoso, e diabinhos voam a seu redor em outros momentos, tentando lhe atrapalhar a oração. Ela ensina a perseverar no caminho da religião, e explica como se livra das tentações. Com isso, busca reforçar que, apesar de suas experiências pouco usuais, está do lado da Igreja Católica. Afinal, ela própria já havia se questionado intensamente sobre a validade de suas visões, e sofrido por ter sido desacreditada por alguns religiosos: “Muitas afrontas e trabalhos passei por dizê-lo, e muitos temores e muitas perseguições. Tão certo lhes parecia que eu tinha um demônio que algumas pessoas queriam me exorcizar (…) eu via que os confessores tinham medo de ouvir minha confissão” (Ibid, p. 263). Conforme suas visões se intensificam e se tornam mais conhecidas, maior é a reação externa, chegando a ponto de lhe recomendarem fazer figas quando tivesse uma visão, e de proibirem-na de orar. Nesse ponto, o próprio Deus se comunica com Teresa, censurando os padres: “Quando me tiraram a oração, pareceu-me que [Deus] tinha se aborrecido. Disse-me que dissesse a eles que aquilo já era uma tirania” (Ibid, p. 264). As experiências místicas prosseguem, a levando a novos níveis de contato com o sobrenatural, que misturam dor e gozo.

Teresa torna-se ainda mais problemática quando atende a um novo chamado sobrenatural: fundar um novo Carmelo, de acordo com as antigas regras da Ordem. Nessa nova configuração, as monjas deveriam ser pobres, poucas e isoladas do mundo, de modo a se dedicarem mais intensamente à vida espiritual. Tudo ordens expressas de Deus. As reações viriam de todos os lados, tanto da Igreja quanto da sociedade, e Teresa se vê quase como uma das personagens dos romances de sua juventude. Sua decisão de reformar a ordem contraria a todos, e causa grande frenesi em Ávila. Precisa ludibriar as autoridades para criar o convento, fora dos muros de Ávila, que dedica a São José. Apesar disso, era popular entre as carmelitas, tendo sido eleita priora do Convento da Encarnação pouco antes da fundação do convento reformado, em 1562, o primeiro da futura Ordem das Carmelitas Descalças. É neste ponto de sua vida, efervescente espiritual e politicamente, que Teresa encerra seu relato. A primeira versão do texto foi entregue a seus confessores em 1565.

Sangue impuro e de mulher

Livro da vida torna-se mais interessante à medida que o leitor vai além do que a santa conta em suas páginas. Destinado a censores da Igreja e alvo da censura internalizada da própria autora, o escrito buscava demonstrar quão ortodoxa e correta era a monja, mesmo que seus métodos de ascese fossem pouco usuais — especialmente vindos de uma mulher. Por isso, muitos dos aspectos históricos e culturais da obra abrem-se a partir de detalhes que a santa menciona apenas de passagem, ou mesmo no que ela deixa de mencionar.

Tal contextualização histórica começa pela sua teologia. Segundo Otger Steggink, “A mística como experiência humana não existe de forma abstrata, em estado puro. Nesse sentido, não pode ser adquirida em separado (…) Toda experiência de fé, relacionada a Deus ou às pessoas, vem ao encontro ou reage a uma problemática humana geral” (STEGGINK, 2015, p. 7–8). Para o autor, a teologia de Santa Teresa e a reação que ela provocou se inserem no contexto característico da cristandade ocidental do século XVI, onde, após a Reforma Protestante, a Igreja Católica impõe regras estritas para a manifestação e exercício da fé, buscando se distanciar de tudo que lembrasse o protestantismo — a exemplo da subjetividade no contato com o divino. Assim escreve Steggink:

A teologia oficial e precisamente a Inquisição espanhola não só perseguem os chamados Alumbrados e outras correntes similares de matiz protestante, senão que também tomam uma posição de suspeita diante de todas as formas de vida de oração, contemplação e mística. Todos os grandes místicos e autores espirituais do século de ouro espanhol: João Ávila, Luis de Granada, Francisco de Osuna, Inácio de Loyola, Pedro de Alcantara, Teresa de Jesus e João da Cruz, devem experimentar que seus escritos e suas atividades espirituais sejam alvo de constantes suspeitas e condenações pelos representantes da teologia eclesiástica oficial, os teólogos inquisidores. (Ibid, p. 19).

Em 1559, o grão inquisidor da Espanha, Fernando de Valdés, proíbe todas as obras espirituais em língua vernácula, além da tradução da Bíblia para o castelhano (Ibid, p. 19). Segundo o autor, nesse momento se abre uma fenda entre a teologia oficial e a prática mística, distância institucional contra a qual Teresa lutaria pelo resto da vida.

Fatores estritamente históricos também revelam porque Teresa escreveu como escreveu — e porque deixou de escrever outras coisas. Na construção de uma imagem pessoal ilibada em Livro da vida, Teresa omite sua origem judaica. Em uma Espanha submetida às leis de pureza de sangue, ter um avô judeu convertido ao cristianismo não era boa coisa. E era este, precisamente, o caso da monja. A origem semita dos Sánchez de Cepeda seria oculta por um título de cavalaria, comprado por Alonso, pai de Teresa, na expectativa de apagar o fundo estigma reservado aos descendentes de judeus. Pelo lado da mãe, os Ahumada, Teresa vinha de uma respeitável linhagem de cristãos velhos, mas mesmo essa ascendência é pouco explorada.

Outro motivo para que as práticas e escritos de Teresa fossem vistos com desconfiança pela Igreja era a sua condição feminina: abundavam na Espanha os casos de mulheres supostamente iluminadas, e temia-se que a carmelita fosse uma delas. É célebre o exemplo de Magdalena de la Cruz (1487–1570), freira franciscana de Córdoba tida como santa, milagreira e profetisa, bem relacionada com as cortes e com religiosos. Após investigação da Inquisição, apurou-se que tanto os milagres executados por ela quanto os demais sinais de santidade, como chagas que imitavam as de Cristo, eram fraudes. A religiosa foi condenada à prisão por ter “dito palavras e proposições heréticas, pactuado com o demônio, desacatado os Santos Sacramentos e, movida por grande soberba e vaidades, enganado a toda a Cristandade” (CRUZ, 2019, p. 17). Décadas depois o cenário havia mudado muito pouco. Em 15 de dezembro de 1658, uma lisboeta de 50 anos seria condenada ao degredo no Brasil por “dizer que conhecia os eleitos de Deus e fingir visões e revelações e auto-proclamar-se santa” (BORGES, 2005, p. 4). Para a Igreja, era preciso apurar se Madre Teresa de Jesus era de fato uma religiosa séria e compenetrada ou apenas mais uma embusteira, seguindo o procedimento da época. “A Inquisição (…) examinou exaustivamente a qualidade e a origem das revelações, procurou separar as verdadeiras das falsas visões e detectar as impostoras…” (Ibid, p. 5).

Teresa convenceu como católica firme na ortodoxia. Em parte, acredita Joyce de Freitas Ramos, porque a própria santa reconhece não apenas a existência de uma classe de mulheres dadas ao engano religioso, mas também a própria inclinação feminina ao erro nas coisas de Deus:

Segundo ela, era necessário que escrevesse sobre essas temáticas tão perigosas para a mulher pois seriam justamente as mulheres aquelas que mais necessitariam desse tipo de literatura. O discurso aqui vai sendo construído em torno da ideia de que a condição feminina frente às “ações demoníacas” seria comumente mais frágil (RAMOS, 2017, p. 101).

Não sabemos quão consciente Teresa de Jesus estava dessa dinâmica. Estaria ela se referindo às mulheres como seres humanos fracos para ganhar a simpatia dos inquisidores, ou ela de fato acreditava nisso? Nunca saberemos e, nesse ponto, corremos o risco de anacronismo. É tentador imputar a uma freira do século XVI noções atuais de autonomia e valor da mulher, no que devemos ter toda a cautela. Afinal, Teresa pode ter sido uma religiosa fora do comum — letrada, escritora e atrevida em diversos momentos –, mas era uma pessoa de seu tempo.

É interessante observar, no entanto, que em Livro da vida ela deixa entrever alguns dos seus sentimentos em relação ao que deveria ser uma mulher. Tanto a religiosa, posição que ela ocupava e à qual se refere frequentemente como fonte da desconfiança de terceiros, quanto a “comum” — uma senhora casada da alta burguesia, papel que lhe teria sido reservado caso não tivesse adotado o hábito. Era sem dúvida uma vida pesada e triste, soterrada por regras e convenções sociais:

E uma preocupação de manter a compostura condizente com seu estado que não as deixa viver. Comer sem tempo e sem conveniência, porque tudo tem que ser conforme seu estado e não conforme as necessidades. Muitas vezes têm de comer os pratos mais de acordo com seu estado do que com o seu gosto. Assim, repugnou-me totalmente o desejo de ser senhora… (D’AVILA, 2010, p. 318).

O caminho da religiosidade no Carmelo surge, portanto, como uma alternativa à servidão — outro termo que ela utiliza — das normas do seu estamento social, que precisavam ser observadas em todos os detalhes da vida, do vestir ao comer e andar.

Novo modelo de religiosidade católica

Os problemas com as autoridades religiosas não eram poucos, mas Teresa se provaria uma católica à altura de sua Igreja, uma autêntica teóloga da Contrarreforma. Mesmo as práticas de oração interior, conquanto tenham sido mal vistas pela Igreja espanhola, respondiam a inquietações típicas do catolicismo do século XVI. Segundo Célia Maria Borges, “Em consequência do movimento instaurado pela Contra-Reforma, revigorou-se o interesse pela espiritualidade mística, não só entre religiosos, mas igualmente entre leigos (…) A crença na possibilidade de ascender a uma esfera divina compôs assim o imaginário da época” (BORGES, 2005, p. 1).

Teresa não estava sozinha nessa e outras tendências. A fundação da Companhia de Jesus, em 1534, conversa diretamente com a reforma da Ordem Carmelita proposta por Santa Teresa. Ambas as tendências religiosas buscavam purificar o catolicismo pós-Reforma Protestante, aproximando-o de ideais de pureza e rigor. Também a teologia jesuítica prezava a oração introspectiva e disciplinada. Não por acaso, entre os amigos e confessores de Teresa estavam padres jesuítas. Ambas as vertentes também exerceram algum tipo de “militância” religiosa, no sentido utilizado por Charles Boxer em A Igreja Militante e a Expansão Ibérica. O fervor missionário que levava os jesuítas a extremos do planeta como o Japão e as colônias ibéricas na América também estava presente na Teresa reformadora do Carmelo. Se os jesuítas buscavam estabelecer uma nova civilização cristã em terras distantes da Europa, sem os vícios que assolavam o continente, Madre de Ávila desejava fazê-lo dentro dos conventos de sua Ordem e pela Espanha afora. Nos anos que se seguiram à escrita de Livro da vida, Santa Teresa fundaria 17 conventos da nova Ordem das Carmelitas Descalças. Pode-se dizer, portanto, que tenha sido representante da igreja militante interna a seu país.

Sua influência no mundo ibérico é analisada por Célia Maria Borges no artigo “Santa Teresa e a espiritualidade mística: a circulação de um ideário religioso no Mundo Atlântico”. Segundo a autora, a popularidade dos métodos de oração interna não arrefeceu com as proibições impostas pela Inquisição. O grande interesse de fiéis femininas pelo tema levava muitos padres a sugerirem o mesmo que foi indicado a Teresa: que se escrevesse sobre as tais experiências místicas para validação ou não pela autoridade religiosa. Borges aponta para a existência de vários outros “livros da vida” no mundo ibérico. Mariana da Purificação, Maria Isabel das Chagas e Soror Clara Gertrudes do Sacramento estariam entre as mulheres do século XVI que, à moda de Teresa, escreveram sobre suas vidas e crenças. Após a morte de Santa Teresa e a primeira publicação oficial de Livro da vida — antes disso, com a autora ainda viva, o escrito já havia circulado de maneira extraoficial — os “livros da vida” se multiplicam. Freiras, beatas e leigas queriam ser como Teresa de Jesus. Espelhavam-se em seu modelo de oração, admiravam seu empreendimento de reforma da Ordem Carmelita e desejavam seguir seu modelo de santidade. Tal influência, é claro, foi além dos limites da Península Ibérica, chegando às colônias portuguesas e espanholas na América. No México, Maria Isabel Encarnación funda o convento Carmelita Descalçado de Pueblas no início do século XVII. Em 1649, o Tribunal da Inquisição na Cidade do México acusa a freira Teresa Romero, seguidora da Teresa de Jesus, de alumbramento. No Brasil colônia, em 1748, Madre Jacinta de São José funda o que viria a primeiro convento de regra carmelita reformada do País, no Rio de Janeiro. Jacinta também escreveu seu “livro da vida”, calcado no exemplo da mestra espanhola. Conforme Borges,

A sua [de Santa Teresa d’Ávila] vida devota reproduz, como tantas outras, ideais que circularam na Península e foram reapropriadas por pessoas no Além-Mar. Ao se aventurarem no campo da mística, estas mulheres, de alguma forma, rompiam com o mundo fechado do saber das autoridades religiosas. Neste sentido vale a pena recorrer à afirmação de Michel de Certeau, quando diz que (…) “a mística é uma reação contra a apropriação da verdade pelos clérigos que se profissionalizaram a partir do século XIII; ela privilegia as luzes dos iletrados, a experiências das mulheres, a sabedoria dos loucos […] Ela sustenta que o ignorante tem competência em matéria de fé”. (Ibid, p. 9).

Ao esquivar-se do destino de mãe e senhora e se entregado às suas impressões individuais no campo religioso, Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada pode ter experimentado uma sensação próxima a de ser uma das heroínas de cavalaria cujas aventuras lia com tanta emoção, nos dias de juventude. Sua opção pela espiritualidade mística, expressa em Livro da vida, ofereceu a outras mulheres um novo caminho de vida e de relacionamento com o divino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, Célia Maria. Santa Teresa e a espiritualidade mística: a circulação de um ideário religioso no Mundo Atlântico. In: Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa, 2005. Anais eletrônicos. Disponível em <http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/celia_maia_borges.pdf>. Acesso em 2/08/2021.

BOXER, Charles. A Igreja Militante e a Expansão Ibérica: 1440–1770. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CRUZ, César Augusto Mendes. Entre santas e embusteiras: Magdalena de la Cruz (1500–1546). Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas. Disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/335788/1/MendesCruz_CesarAugusto_M.pdf>. Acesso em 2/08/2021.

D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

RAMOS, Joyce de Freitas. Construindo um discurso de santidade: a obra de Santa Teresa de Ávila como autobiografia espiritual em sua produção e recepção. Bilros, Fortaleza, v. 5, n. 10, p. 95–114, set.-dez., 2017. Seção Dossiê Temático. Disponível em: <http://seer.uece.br/?journal=bilros&page=article&op=view&path%5B%5D=2906&path%5B%5D=2347>. Acesso em 2/08/2021.

STEGGINK, Otger. Teresa de Ávila. Mulher — mística — doutora. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

1 D’Ávila, Santa Teresa. Livro da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 152.

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laura carolina

respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada | jornalista e estudante de história | são paulo | laura.cac90@gmail.com