bom ser gato

laura carolina
2 min readAug 22, 2022

observações do sentido felino

tão bom ser gato. subir alto e fácil. descer sempre e, se cair, que seja de pé, quatro patas bem fincadas no chão. o gato domou a gravidade, e disso concluo que o homem virou astronauta porque não podia virar gato: a inveja do seu andar macio, etéreo; do apetite comedido, satisfeito com uma pastinha sabor frango.

astronautas na terra, gatos são íntimos do sol e da lua. do primeiro, seguem o calor com devoção e respeito. encontrando uma nesga de calor e luz, entregam-se dóceis, sensuais. nunca se fartam. cerram a pupila, deixando só uma frestazinha. e vivem o sol com calma.

e de noite, quando nós e outras criaturas nos vemos perdidos e vulneráveis, não nos restando saída a não ser dormir, suspender a existência durante penosas horas de escuridão, os gatos saltitam, correm, observam, respiram na sua plenitude. caçam, contemplam, pouco ou nada intimidados pela falta de luz. a biologia os abençoou a esse ponto.

dizem na internet que gatos são superiores aos cachorros porque, ao contrário destes, felinos nunca trabalhariam para a polícia. e tenho preguiça de descrever as implicações políticas e simbólicas de ser gato. todo mundo sabe que eles não dão muita bola para a autoridade, e que têm aquele ar permanente de desdém pelos maiores. trabalham e brincam quando querem, dormem quando dá vontade e estão onde desejam. lênin os amava, talvez por enxergar neles a rebeldia presente em todos os revolucionários, a habilidade de se camuflar e sair correndo pelos telhados como quem foge de uma autoridade injusta e arbitrária. mas não quero falar disso.

não é isso que me encanta nos gatos — não mais, e não apenas.

gatos fazendo coisas humanas no almanaque “eu sei tudo”, 1928.

hoje, quando penso neles e os observo, fico intrigada com as carinhas quase-humanas. parece que eles têm sempre um meio sorriso, uma palavra na ponta da língua (ou do bigode) que, pra nossa frustração, sempre sai na forma de miau. mas quando olhamos de perto seus olhinhos captamos a luz de algo mais. há neles um lampejo de sentido, de vida interna, quase impossível de ignorar. gatos entendem tudo.

abobalhados diante da beleza e do perpértuo mistério felino — quantas, quantas civilizações erigidas pelo homo sapiens já não dedicaram amor e devoção aos gatos? — nos resta contemplar mais. todo dia querer ser gato, diariamente os prescrutar mais um pouco. não, não acho que um dia chegaremos a encontrar o sentido, a gritar “eureka, finalmente sabemos o que é o gato!”. talvez biologicamente sim, mas existencialmente não.

que bom que, até hoje, ninguém conseguiu colocar em palavras definitivas porque o simples perfilzinho de um rosto felino provoca tanto deleite. o importante é que encanta a vista. é bom ser gato, mas tampouco é ruim poder só vê-los, embebendo-se de mistério.

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laura carolina

respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada | jornalista e estudante de história | são paulo | laura.cac90@gmail.com