bodas de passagem

laura carolina
4 min readMar 28, 2023

o tempo é o senhor do ônibus. ou será o contrário?

tal qual na grande história, nossas breves historietas pessoais também são repletas de possíveis efemérides. como nossas vidas são feitas de relacionamentos (com pessoas, coisas e até acontecimentos), sempre penso nessas datas marcantes como bodas. casamentos que pactuamos por aí, desde a mais tenra idade até sabe-se lá quando (pois também existem divórcios nesse sistema).

pois bem. neste ano, 2023, faço bodas de ônibus. ou melhor: bodas com o ônibus. é um casamento de 20 anos, contraído quando eu era adolescente e não sabia muito da vida. do pouco que sabia, boa parte fora aprendida ali mesmo.

era uma espécie de rito de passagem. eu estudava numa cidade vizinha, e desde os sete anos ia e voltava da escola de perua escolar. não sei quem determinou isso, mas existia um movimento coletivo de, aos 13, na sétima série, abandonar a perua e adotar o ônibus regular como meio de transporte escolar. e assim começamos uma trajetória que existe até hoje, duas décadas depois.

já se tornou um lugar-comum dizer que o transporte coletivo forma o caráter de uma pessoa. principalmente em uma mega-uberlópole, como a região metropolitana de são paulo. é no coletivo que vivemos mais intensamente a coletividade. cheiros, suores, hálitos… a nível biológico, o ônibus é a estufa onde testaremos a resistência do nosso corpo a microorganismos vindos de outrem (no caso, muitos outrens, todos ao mesmo tempo). a nível mental também há testes de sobrevivência. eu era uma neófita na vida de ônibus quando entrei na primeira e única discussão com outros passageiros. eram uns meninos voltando de uma escola vizinha à minha, que gritavam muito uns com os outros e faziam brincadeiras sem graça. olhando pra eles com ar de desprezo, eu pedi que falassem mais baixo e disse que eles eram imaturos. não adiantou muito, e eis aí uma lição muito literal da vida sobre gritarias.

mas nem tudo foi desarranjo e riscos. o ônibus foi, também, o lugar onde mais li e pensei na vida. amo isso no nosso casamento. salvo algumas ocasiões, ele sempre foi o lugar onde eu estava finalmente sozinha, depois de uma manhã ou o dia inteiro com amigos. podia abrir um livro e ler até perder meu ponto (isso acontecia muito, e era tão bom esse enlevo de leitura). ou então abrir o livro e esquecer dele porque fiquei olhando pela janela, vendo a paisagem passar e pensando em qualquer coisa. ou em nada. esvaziando a mente, lembrando, imaginando. mais do que qualquer outro, o ônibus sempre foi meu local predileto e mais conveniente de introspecção e imaginação. portanto, o lugar onde eu fui aos poucos me tornando eu mesma.

e continuo a me tornar, porque essa história não acabou.

busão no centro de são paulo, anos 50 (fonte: folhapress)

no ônibus, eu fiz o meu tempo e me entendi nele. pois ali o tempo nunca é o mesmo. diferente da objetividade das máquinas sobre trilhos como trem e metrô, o ônibus é dado a caprichos. é humano.

tem motorista e durante muito tempo teve cobrador (contando moedas, ajudando a girar uma catraca emperrada, brigando com quem fazia bagunça). pode chegar atrasado ou adiantado meio sem aviso. um trajeto pode levar 20, 30 ou 40 minutos (pelo menos fora dos benditos corredores de ônibus). quando o trem ou metrô não sai de uma estação não há muito a ser feito, porque quem conduz o bichão nos nos escuta. no ônibus, bate-se na lataria, gritando “vambora, motô!”. bolha de paixões e ânimos exaltados, mais do que outros meios de transporte, juro que certa feita testemunhei uma briga tão estranha entre o motorista e um passageiro que fez todo mundo descer do veículo e alguém chamar a polícia. já eram mais de 11 da noite.

de certa forma, me conforta saber que provavelmente o ônibus não vai morrer. por motivos meio chatos. somos um país rodoviarista, onde o transporte sobre trilhos foi deixado de lado pelo planejamento territorial dos últimos 60 anos em favor dos transportes sobre rodas. por isso, ir de um ponto A a um B muitas vezes só é possível por ônibus. e o brasil é um país formado por pobres. carro custa caro, e pra muita gente não será um recurso possível durante boa parte das suas vidas. sobra o ônibus.

nunca foi minha intenção, com esse texto, fazer vista grossa aos problemas de mobilidade e desigualdade nas nossas cidades (bom avisar, vai saber). não estou passando pano, e nem romantizando. até porque já passei perregues o suficiente pra não ser capaz desse tipo de cinismo.

faço apenas uma contribuição nessa castigada história coletiva dos coletivos. se no ônibus aprendi a pensar, nada mais justo que pensar nele. e, pensando, pensei assim: o ônibus é o senhor do tempo. navegando contínua e constantemente sobre os nosso tecidos urbanos (e também rurais), há décadas eles nos fazem sacolejar, ficar nervosos e nos sentir injustiçados por um sistema opressivo (o ônibus ajuda a forjar consciência de classe). mas também nos faz olhar pela janela quando chove e, escutando música, acompanhar os pingos escorrendo pelo vidro, esvaziando nossa mente e abrindo espaço para devaneios únicos, impossíveis noutro lugar.

e, mais precioso do que tudo, o ônibus nos leva para casa, ou para onde devemos ir, e ainda assim ensina que estamos de passagem. o tempo é uma viagem, o ônibus ensina.

--

--

laura carolina

respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada | jornalista e estudante de história | são paulo | laura.cac90@gmail.com