adonirostalgia

laura carolina
6 min readMar 31, 2024

são paulo de antigamente, especulação imobiliária e serventia da memória

há na minha vida uma nostalgia ligada a adoniran barbosa — melhor dizendo, dependente dele. trata-se de um saudosismo urbanístico de são paulo, estimulado pelas músicas e retratos tirados de joão rubinato (1910–1982) pela cidade. sim, as imagens de adoniran barbosa idoso posando de gravata borboleta e chapéu no viaduto do chá são uma máquina do tempo que me envia para uma época em que nunca pisei.

no entanto, para além do sentimentalismo e subjetividade do fenômeno adonirostálgico, há aí uma matéria objetiva. é inegável que adoniran retratou a vida em são paulo, que suas músicas compõem o mosaico de uma cidade específica. uma cidade que existiu ali pela metade do século 20, pontilhada pelos trilhos de bonde no centro e com subúrbios servidos por trem.

e por que uma sensação própria à obra de adoniran? ora, porque adoniran chegou até nós como um ser nostálgico. um saudosista que canta histórias passadas na capital, com endereço certo ou incerto. do samba do arnesto, no brás; da casa do nicola, no bexiga; do herói sem nome que pega o último trem para chegar ao jaçanã; de iracema, a noiva trágica que encontra o fim de sua vida na avenida são joão.

(sempre localizei essa cena ali no comecinho da são joão, perto do martinelli, quem sabe por influência de claude levi-strass, outro produtor de umas poucas, porém marcantes, imagens de são paulo do século passado).

avenida são joão fotografada por levi-strauss em 1935

a existência deste texto deve-se em grande parte ao filme “saudosa maloca”. este texto sobre a adonirostalgia, bem como o próprio conceito, estava parado desde 2022, fermentando. eu fui e voltei algumas vezes escrita ao longo de dois anos, mas não encontrava o fio da meada desse conceito e, por conseguinte, o fim do fio. eis uma causa comum de quem empaca num texto: saber que temos algo, mas não onde vai dar. e é penoso percorrer, num texto, um caminho que não se sabe se terá fim. algo que fazemos o tempo todo na nossa própria cabeça — a isso chama-se pensar — , mas quando envolvemos o outro precisamos apontar um ponto final. o fim da meada, ainda que provisório.

e foi o filme estrelado por paulo miklos que me fez enxergar esse fim do fio.

na história, vemos um adoniran maduro, vivendos no final dos anos 70 e recordando sua vida pregressa. no que parece ser a década de 40, ele, o adoniran ficcional, vivia em uma maloca no bexiga com os personagens mato-grosso e joca. personagens bem da realidade de são paulo, o primeiro um migrante, e o segundo filho ou neto de imigrantes italianos. o cortiço era um palacete em ruínas ocupado por dezenas de pessoas, que acaba vindo abaixo para dar lugar a um prédio. nenhuma novidade, sabemos disso tudo pela música. mas nos filme vemos a arrastada (ainda que aparentemente breve) luta da turma do adoniran contra a demolidora-construtora. a especulação imobiliária que assedia, encurrala, exaure e por fim destrói quarteirões antigos da cidade. ela existe desde a época em que a história se ambienta e continua, feroz, até os nossos dias. no filme, na parte passada nos anos 70, ocorre um incêndio em uma favela cercada de novos empreendimentos (inspirado, quem sabe, no caso real da favela do moinho, nos campos elíseos). os personagens afirmam ter sido um incêndio criminoso, com a finalidade de forçar o deslocamento dos moradores.

em diversos momentos, o conceito de progresso apregoado pela construtora é relativizado. “nem todo mundo quer mudar de vida como você pensa”, diz adoniran ao representante da construtora, em cena que consta no trailer. o tal homem apresenta as benesses do progresso, como viver em um apartamento moderno e ver carros grã-finos circulando pelo bairro. em certa altura, o adoniran personagem responde:

“eu, por mim, preferia continuar andando de bonde!”

adoniran barbosa no metrô de são paulo, provavelmente na década de 1970

adoniran, o nostálgico. em sua vida, joão rubinato de fato assistiu a morte dos bondes e a chegada do metrô em são paulo. se ele desperta e comunica a nostalgia é porque viu a cidade mudar. o saudosismo é real e, até certo ponto, inevitável.

eu mesma, dia desses, tive minha dose de nostalgia quando revi os arredores da estação belém do metrô depois de mais de uma década de ausência, encontrando dezenas de condomínios que não estavam lá há 25, 20, 15 anos. é raro que cidades inteiras acabem, mas a nossa cidade morre sempre. se a sua cidade ainda não morreu é porque você é jovem demais. ou porque está desatento.

o novo sempre vem. em 1978, elis regina cantou clássicos como tiro ao álvaro e iracema ao lado do próprio joão rubinato, em carne e osso. o encontro teve lugar no bexiga, e hoje, quase 50 anos depois, o encontro é puro saudosismo, com adoniran ciceroneando elis pelas ruas do bairro, comentando como tudo estava mudando, cantando em um bar simples, com balança mecânica e atendente de camisa aberta. um mundo delicioso que não existe mais. e que adoramos saborear, em maior ou menor dose.

a ironia é que a mesma elis tornou famosa a música que diz “é você que ama que o passado e que não vê que o novo sempre vem”, o que nos leva a pensar que não existe mesmo solução fácil. que seria inviável que todos os palacetes de 1910 estivessem de pé até hoje. é evidente que desejamos a preservação da maior quantidade possível de edificações antigas. que por nós todos os bairros teriam alma, seja lá o que isso for. que oramos para não ser soterrados por unidades do oxxo ou condenados a viver em prédios-caixa de cor cinza, na box-de-crossftização da moradia. o amante do que não existe mais é um ser de esperança, que luta no íntimo ou fora dele para manter uma viva uma fagulha de algo.

ainda assim, a nostalgia é um pouco melancólica porque sabe ser impossível deter em definitivo isso que chamam de progresso, valorização do solo e aumento do gabarito vertical. movimentos sociais e órgãos de preservação do patrimônio trabalham contra a lógica do dinheiro para manter de pé o pouco que seja possível manter, tijolo por tijolo. mas por que fazê-lo, se o novo sempre virá (ainda que não seja necessariamente melhor)?

o motivo é o fato de um palacete demolido — ou a alegoria de um palacete, a imaginação de um palacete, que seja — virar canção e isso se constituir, perfeitamente, em um novo suporte para a memória coletiva. pois a história não termina quando acabam as evidências materiais de um passado. não fatalmente. existem outras trilhas onde podemos caminhar, e sua importância é inversamente proporcional à presença de resquícios materiais: quanto menos foi deixado para trás, mais precisamos falar a respeito do que foi destruído. objetos e construções que atravessam séculos contando uma história são importantes, mas sua ausência não implica em esquecimento absoluto, como algumas mentes mais desesperadas — isto é, sem esperança — podem supor. esquecimento que, cá entre nós, não haverá enquanto o ser humano existir, dado que lembrar parece ser uma faculdade inata da nossa espécie.

e assim o novo vem. melhor ou pior do que existia antes, mais bonito ou mais feio, com mais justiça ou menos injustiça. em tese, tudo é possível. até porque, um dia, todo velho foi a novidade de sua época. mas nem por isso o novo anula para sempre o que foi deixado pelo caminho. contar, cantar e manter ardendo a fagulhazinha da história é nosso antídoto contra o esquecimento, muitas vezes proposital, das histórias que precisam ser recordadas. pois é graça a essa memória coletiva sem matéria, feita de palavras e costurada por imagens, imaginações e reminiscências, que sabemos como era viver na são paulo de 1940. em pernambuco do século 17. nos rios de janeiro de machado de assis e da bossa nova. sabemos e quase o sentimos na pele, no tato, na audição. arrebatamento que acontece quando alguém puxa um samba que começa assim:

se o senhor não tá lembrado, dá licença de contar…

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laura carolina

respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada | jornalista e estudante de história | são paulo | laura.cac90@gmail.com